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A Evolução do Ornamento - Ep 04 -Romantismo: a era do ornamento fake

  • Writer: Caru Valverde
    Caru Valverde
  • Aug 4
  • 7 min read

Updated: 2 days ago

Este texto faz parte da série A Evolução do Ornamento, em que investigo como diferentes movimentos estéticos, culturais e simbólicos moldaram nossa relação com o gesto de ornamentar — da arquitetura à estamparia, da arte à moda.


No episódio 04, o foco é o Romantismo, o estilo que a burguesia do século XIX adotou para criar ancestralidade e parecer mais antiga do que realmente era. Parece estranho? Vem comigo que tudo vai fazer sentido até o fim do post.


O Royal Pavilion, em Brighton, é um dos maiores símbolos da fantasia visual burguesa do século XIX: mistura de estilos, exagero ornamental e uma estética feita para parecer ancestral, mesmo sendo pura encenação.
O Royal Pavilion, em Brighton, é um dos maiores símbolos da fantasia visual burguesa do século XIX: mistura de estilos, exagero ornamental e uma estética feita para parecer ancestral, mesmo sendo pura encenação.

O movimento estético nasceu como uma resposta emocional a um mundo em profunda transformação. No início do século XIX, a Europa ainda lidava com as consequências da Revolução Francesa — que havia derrubado a monarquia e espalhado ideais de igualdade e liberdade — e com a ascensão relâmpago de Napoleão Bonaparte. Ao assumir o poder e se coroar imperador, Napoleão implantou uma nova lógica de governo: centralizada, moderna e baseada no mérito. Ele substituiu o privilégio hereditário por uma estrutura mais racional e burocrática, abrindo espaço para que a burguesia — antes excluída do poder — pudesse ascender. Seu império expandiu essas reformas por toda a Europa, abalando a velha ordem aristocrática. Quando Napoleão foi derrotado, em 1815, os reis voltaram ao trono com o Congresso de Viena, tentando restaurar o mundo de antes.


A gravura de Jean-Baptiste Isabey retrata o Congresso de Viena (1815), onde monarcas e diplomatas tentaram restaurar a ordem do Antigo Regime — como se a Revolução Francesa e Napoleão não tivessem virado tudo do avesso. Foi o último grande ato de pose da velha aristocracia.
A gravura de Jean-Baptiste Isabey retrata o Congresso de Viena (1815), onde monarcas e diplomatas tentaram restaurar a ordem do Antigo Regime — como se a Revolução Francesa e Napoleão não tivessem virado tudo do avesso. Foi o último grande ato de pose da velha aristocracia.

Mas a Europa já não era a mesma. A burguesia, enriquecida com o comércio e a indústria, agora tinha acesso à educação, cargos públicos e influência política — enquanto a aristocracia, acostumada a privilégios de sangue, via sua autoridade esvaziar. O prestígio não era mais automático: precisava ser comunicado, performado, encenado. Entre o desejo de liberdade e os resgates autoritários, entre a modernidade e o apego à tradição, o sentimento era de instabilidade. E foi nesse clima ambíguo que o ornamento voltou com força — não só como expressão de emoção, mas como ferramenta estratégica para construir uma imagem de tradição que, muitas vezes, não existia.


Enquanto o Neoclassicismo buscava na ordem greco-romana um modelo de estabilidade racional, o Romantismo mergulhou na fantasia do passado como uma forma de fabricar tradição. Gótico medieval, arte islâmica, folclore europeu, culturas orientais e africanas foram resgatados, não com rigor histórico, mas com olhos cenográficos e industriais. Essa mistura intencional — muitas vezes descontextualizada — deu origem ao revivalismo: uma encenação estética do antigo, usada para comunicar prestígio e inventar raízes visuais para uma classe social que ainda buscava legitimidade.


Na arquitetura, isso se traduziu em construções que resgatavam formas do passado com dramaticidade. Fachadas góticas, vitrais coloridos, estruturas inspiradas em castelos medievais, colunas e arcadas com apelo cenográfico se espalharam pela Europa. Um dos casos mais simbólicos é o Palácio de Westminster, em Londres — reconstruído no século XIX com aparência medieval para reforçar, paradoxalmente, a tradição de uma nação que já era tradicional. Era pura cenografia política, quase como um castelo da Disney, mas com intenções institucionais muito sérias.


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A Abadia de Westminster é um dos ícones da arquitetura revivalista do século XIX. Sua aparência medieval não é uma relíquia do passado, mas uma construção simbólica de tradição — como o próprio Palácio de Westminster, feito para parecer antigo e reforçar uma herança que já era encenada.
A Abadia de Westminster é um dos ícones da arquitetura revivalista do século XIX. Sua aparência medieval não é uma relíquia do passado, mas uma construção simbólica de tradição — como o próprio Palácio de Westminster, feito para parecer antigo e reforçar uma herança que já era encenada.
O Royal Pavilion, construído no início do século XIX, é um dos maiores exemplos do revivalismo estético romântico: mistura de estilos orientais, islâmicos e góticos para criar uma arquitetura teatral, exótica e totalmente cenográfica — feita sob medida para a nova elite britânica performar prestígio.
O Royal Pavilion, construído no início do século XIX, é um dos maiores exemplos do revivalismo estético romântico: mistura de estilos orientais, islâmicos e góticos para criar uma arquitetura teatral, exótica e totalmente cenográfica — feita sob medida para a nova elite britânica performar prestígio.
O Palácio da Pena, em Portugal, é uma das expressões mais vibrantes do revivalismo romântico: mistura de estilos gótico, mouro, manuelino e renascentista, tudo junto e bem colorido — como se o passado tivesse sido pintado com filtros de Instagram. Um castelo feito para encantar… e encenar.
O Palácio da Pena, em Portugal, é uma das expressões mais vibrantes do revivalismo romântico: mistura de estilos gótico, mouro, manuelino e renascentista, tudo junto e bem colorido — como se o passado tivesse sido pintado com filtros de Instagram. Um castelo feito para encantar… e encenar.

Nos interiores, a teatralidade continuava: arabescos, tecidos pesados, papéis de parede com cenas pastorais e florais exuberantes enchiam os ambientes de nostalgia e afeto — ainda que estilizados com o exagero de quem quer muito parecer legítimo.


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A Maison de Victor Hugo, em Paris — onde o próprio escritor projetou uma cenografia afetiva com móveis esculpidos, tapeçarias densas, papel de parede exuberante e uma explosão de referências orientais. Um exemplo íntimo da teatralidade burguesa do século XIX.
A Maison de Victor Hugo, em Paris — onde o próprio escritor projetou uma cenografia afetiva com móveis esculpidos, tapeçarias densas, papel de parede exuberante e uma explosão de referências orientais. Um exemplo íntimo da teatralidade burguesa do século XIX.
O The George Inn, na Inglaterra, mostra como a estética romântica sobreviveu ao século XIX: madeira escura, tapeçarias densas, iluminação suave, um toque de nostalgia e o conforto visual de um passado encenado — agora naturalizado. Porque às vezes a tradição é só o que parece familiar.
O The George Inn, na Inglaterra, mostra como a estética romântica sobreviveu ao século XIX: madeira escura, tapeçarias densas, iluminação suave, um toque de nostalgia e o conforto visual de um passado encenado — agora naturalizado. Porque às vezes a tradição é só o que parece familiar.
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O ápice do teatro burguês em forma de decoração. Cada cômodo do Royal Pavilion é uma fantasia cenográfica: lustres em forma de flor de lótus, paredes rosa com dragões dourados, jantares sob abóbadas pintadas, móveis europeus com estética chinesa. Uma colagem orientalista e emocional — feita sob medida para uma elite que queria parecer sofisticada, antiga e cosmopolita. Tudo ao mesmo tempo.
O ápice do teatro burguês em forma de decoração. Cada cômodo do Royal Pavilion é uma fantasia cenográfica: lustres em forma de flor de lótus, paredes rosa com dragões dourados, jantares sob abóbadas pintadas, móveis europeus com estética chinesa. Uma colagem orientalista e emocional — feita sob medida para uma elite que queria parecer sofisticada, antiga e cosmopolita. Tudo ao mesmo tempo.

Durante o século XIX, o mobiliário se tornou um verdadeiro palco de experimentações históricas. Era o tempo dos revivals: o gótico ressurgia com ogivas e entalhes dramáticos, o rococó voltava em curvas e dourados, o neoclássico impunha sua simetria — e até referências orientais ganhavam espaço. Essa mistura exuberante refletia não só o gosto pela ornamentação, mas também o espírito romântico de busca por identidade, memória e grandeza. Era o passado reinventado como espetáculo visual.


Na arte, nomes como Caspar David Friedrich se tornaram referências. Suas paisagens nebulosas, com figuras solitárias diante da natureza sublime, sintetizam o espírito introspectivo do Romantismo. Já Eugène Delacroix traduzia esse sentimento em cenas históricas intensas, com cores vivas e composições dramáticas. Era a estética da emoção, da saudade, do sublime.


Caspar David Friedrich é o mestre da introspecção visual: nesta obra, o vazio das ruínas góticas contrasta com a beleza melancólica do pôr do sol — um convite ao sentimento, à dúvida, ao sublime que habita entre o que foi e o que se sente.
Caspar David Friedrich é o mestre da introspecção visual: nesta obra, o vazio das ruínas góticas contrasta com a beleza melancólica do pôr do sol — um convite ao sentimento, à dúvida, ao sublime que habita entre o que foi e o que se sente.

Na estamparia, esse imaginário se tornou superfície. Graças a avanços como a impressão a cilindro e o block printing industrial, as estampas ganharam escala e sofisticação. Indústrias têxteis e de papel de parede reproduziam arabescos, florais rebuscados, cenas medievais, elementos islâmicos e heráldicas — símbolos de brasões e nobreza medieval. As cores se sobrepunham, os pigmentos ficavam mais ricos. A estampa não era só ornamento: era narrativa visual, era memória impressa.


Uma releitura romântica do rococó francês, com arabescos e curvas delicadas. É um exemplo claro de como o romantismo do século XIX revalorizou estéticas do passado como estratégia emocional e ornamental.
Uma releitura romântica do rococó francês, com arabescos e curvas delicadas. É um exemplo claro de como o romantismo do século XIX revalorizou estéticas do passado como estratégia emocional e ornamental.
Toile de Jouy – “Le dessin écaille ou Scènes antiques”, c. 1802 - Oberkampf Factory, Jouy-en-Josas, França. A clássica toile de Jouy com cenas bucólicas e figuras da Antiguidade impressas por chapa de cobre. Romantismo e neoclassicismo se entrelaçam nessa narrativa estampada que habita tanto o imaginário quanto o mobiliário da época.
Toile de Jouy – “Le dessin écaille ou Scènes antiques”, c. 1802 - Oberkampf Factory, Jouy-en-Josas, França. A clássica toile de Jouy com cenas bucólicas e figuras da Antiguidade impressas por chapa de cobre. Romantismo e neoclassicismo se entrelaçam nessa narrativa estampada que habita tanto o imaginário quanto o mobiliário da época.

Os motivos florais em rosa e vinho evocam o romantismo doméstico e feminino do século XIX. A estampa transmite delicadeza, amor romântico e uma estética ornamental que se aproxima da pintura.
Os motivos florais em rosa e vinho evocam o romantismo doméstico e feminino do século XIX. A estampa transmite delicadeza, amor romântico e uma estética ornamental que se aproxima da pintura.
 Estampa neogótica britânica, 1830 - Impressão sobre algodão -  Durante o século XIX, o romantismo inspirou uma onda de revivalismos históricos — e o gótico medieval foi um dos estilos mais revisitados. Essa estampa, com arcos ogivais, rosáceas e colunas estilizadas, é um tributo impresso às catedrais góticas.  Na decoração, esse tipo de padrão evocava espiritualidade, tradição e um desejo nostálgico de conexão com o passado sagrado.
 Estampa neogótica britânica, 1830 - Impressão sobre algodão -  Durante o século XIX, o romantismo inspirou uma onda de revivalismos históricos — e o gótico medieval foi um dos estilos mais revisitados. Essa estampa, com arcos ogivais, rosáceas e colunas estilizadas, é um tributo impresso às catedrais góticas.  Na decoração, esse tipo de padrão evocava espiritualidade, tradição e um desejo nostálgico de conexão com o passado sagrado.
 O ornamento estrutural (strapwork) se mistura aos motivos florais, num diálogo entre rigidez e delicadeza — reflexo do ecletismo do período, quando estilos históricos eram recombinados livremente.
O ornamento estrutural (strapwork) se mistura aos motivos florais, num diálogo entre rigidez e delicadeza — reflexo do ecletismo do período, quando estilos históricos eram recombinados livremente.
Tecido para decoração, Mulhouse, Alsácia, 1869 - Impressão por blocos de madeira. A técnica tradicional de Mulhouse resiste em pleno fim do século, unindo exuberância decorativa com um gosto nostálgico por padrões florais entrelaçados, típicos da estética romântica tardia.
Tecido para decoração, Mulhouse, Alsácia, 1869 - Impressão por blocos de madeira. A técnica tradicional de Mulhouse resiste em pleno fim do século, unindo exuberância decorativa com um gosto nostálgico por padrões florais entrelaçados, típicos da estética romântica tardia.
França, 1790 - Delicada estampa floral com repetição simétrica, impressa provavelmente com blocos de madeira. Um exemplo do gosto pré-romântico pela natureza domesticada e idealizada, em cores suaves e composições harmônicas.
França, 1790 - Delicada estampa floral com repetição simétrica, impressa provavelmente com blocos de madeira. Um exemplo do gosto pré-romântico pela natureza domesticada e idealizada, em cores suaves e composições harmônicas.

Esse retorno ao ornamento foi mais do que uma moda passageira: foi uma marca de classe. A burguesia em ascensão viu na decoração uma chance de se diferenciar, de demonstrar cultura, sensibilidade e sofisticação. Casas, roupas, objetos e interiores foram preenchidos por elementos que comunicavam afeto, tradição e desejo — mesmo que tudo fosse, no fundo, uma construção estética do que se queria parecer.

O ornamento voltou a ser protagonista. Não apenas bonito, mas simbólico. Uma rebeldia sutil contra o mundo limpo, rápido e racional que se instalava — e, ao mesmo tempo, uma maquiagem visual para uma identidade ainda em construção.



Pra quem trabalha com imagem, cor e narrativa, o Romantismo é um prato cheio — e uma armadilha também. Ele mostra que o ornamento não precisa ser inédito para ser impactante: pode citar, homenagear, remixar. Mas também pode maquiar, fingir, encenar. A estética romântica emociona, sim — mas às vezes, emociona justamente pra disfarçar. É aí que mora o truque, e também o fascínio.


Talvez por isso o Romantismo, visto de hoje, pareça meio brega. Com seus exageros, suas poses dramáticas, suas misturas fantasiosas, ele beira o kitsch — essa estética do excesso que nos faz rir, torcer o nariz, ou amar justamente por isso. Mas se olharmos com atenção, o Romantismo já fazia o que o presente aprendeu a valorizar: encenar com liberdade, misturar com ousadia, emocionar com estilo. E nisso, ele foi visionário.


Na próxima parada da nossa série, o ornamento vira ideologia. A gente se encontra no episódio sobre o movimento Arts and Crafts, onde arte, indústria e revolução visual se entrelaçam.

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