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A Evolução do Ornamento - Ep 02 - Rococó: o Prazer como Linguagem Visual

  • Writer: Caru Valverde
    Caru Valverde
  • Jul 8
  • 6 min read

Updated: 2 days ago

Este texto faz parte da série A Evolução do Ornamento, em que investigo como diferentes movimentos estéticos, culturais e simbólicos moldaram nossa relação com o gesto de ornamentar — da arquitetura à estamparia, da arte à moda.


No episodio 02, o foco é o Rococó, estilo que nasceu da vontade de suavizar os exageros do Barroco e acabou se tornando a expressão sofisticada de um prazer desvinculado da realidade.


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O que veio antes: quando o exagero saiu do altar


Para entender o Rococó, é preciso olhar para o que veio antes: o Barroco. Com sua dramaticidade carregada, foi usado pela Igreja como uma linguagem de fé e encantamento e, logo depois, pelos monarcas como linguagem de poder.


Com o passar das décadas, os excessos do Barroco perderam o vínculo com a fé e passaram a expressar apenas o acúmulo e o poder. Os ambientes, carregados de ouro, sombras e dramaticidade, começaram a parecer opressivos e pesados. A aristocracia, já distante das funções religiosas, passou a desejar uma estética que refletisse seus próprios prazeres terrenos: espaços mais claros, gestos mais leves, e um cotidiano que celebrasse o conforto. Foi nesse contexto que o hedonismo se impôs como um novo ideal — e com ele, uma nova linguagem ornamental.


BARROCO X ROCOCÓ
BARROCO X ROCOCÓ

Hedonismo: a filosofia do prazer refinado


Segundo o dicionário, hedonismo é a doutrina que afirma o prazer como bem supremo da vida. No século XVIII, essa filosofia se traduziu em práticas muito concretas: salões aconchegantes onde se discutia arte e fofoca, jardins perfumados para passeios ociosos, porcelanas decoradas até nos mínimos detalhes, vestidos com rendas e bordados, tecidos leves que dançavam com o corpo. Era uma busca constante por satisfação sensorial, deleite estético e pequenos prazeres cotidianos.


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Essa nova sensibilidade moldou não apenas o comportamento da aristocracia, mas também se refletiu nas formas com que decoravam e representavam o mundo ao seu redor: das escolhas arquitetônicas aos móveis entalhados, dos objetos do dia a dia às roupas ricamente adornadas. Nesse contexto, o ornamento deixou de servir a narrativas religiosas ou políticas e passou a celebrar, acima de tudo, o prazer visual.


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O rococó como linguagem visual: curvas, conchas e cor pastel


Visualmente, o Rococó escolheu a leveza e o encantamento. Trouxe uma estética mais fluida, íntima e ornamental, feita para agradar aos sentidos e encantar nos detalhes.


  • Linhas curvas e assimétricas, que pareciam dançar pelas paredes;

  • Arabescos dourados, inspirados em folhas, conchas e ondas;

  • Flores miúdas e delicadas, em composições decorativas que fluíam organicamente;

  • Cores claras, como rosa pálido, azul celeste, verde menta e dourado suave — que dominavam tanto a decoração quanto a moda;

  • Motivos pastorais e amorosos, com cenas da natureza idealizada e da vida galante.


Na arquitetura, o estilo Rococó se espalhou principalmente por palácios e residências aristocráticas. Na França, o Petit Trianon e os aposentos de Maria Antonieta em Versalhes são exemplos icônicos. Na Alemanha, o Palácio de Würzburg e a Igreja Wieskirche traduzem esse espírito decorativo com maestria.


Petit Trianon, Um refúgio íntimo de Maria Antonieta dentro da opulência de Versalhes.
Petit Trianon, Um refúgio íntimo de Maria Antonieta dentro da opulência de Versalhes.
Aposentos de Maria Antonieta, em Versalhes.
Aposentos de Maria Antonieta, em Versalhes.
Salão Imperial do Palácio de Würzburg, Alemanha
Salão Imperial do Palácio de Würzburg, Alemanha
Órgão da Igreja de Wieskirche, Alemanha.. Uma das raras expressões do Rococó em espaços religiosos.
Órgão da Igreja de Wieskirche, Alemanha.. Uma das raras expressões do Rococó em espaços religiosos.

Apesar de algumas exceções, como essa última, poucas igrejas adotaram plenamente o estilo Rococó. A leveza e sensualidade da linguagem visual não agradaram à Igreja, que via esse refinamento hedonista com certa desconfiança. Por isso, o Rococó acabou se consolidando mais como uma estética profana — dedicada à vida aristocrática, ao lazer e ao prazer, e menos ao sagrado.


Na pintura, artistas como Jean-Honoré Fragonard e François Boucher criaram cenas idílicas de amantes em jardins, de mulheres lendo cartas perfumadas, de ninfas e cupidos em meio a flores. Já na escultura e na marcenaria, nomes como Juste-Aurèle Meissonnier e os irmãos Caffieri produziram ornamentos exuberantes e móveis em estilo “rocaille”.


"O Balanço", de Jean-Honoré Fragonard. Flertes, flores e frivolidade.
"O Balanço", de Jean-Honoré Fragonard. Flertes, flores e frivolidade.
"Diana e Endimião", de François Boucher
"Diana e Endimião", de François Boucher
Desenho de cadeira de Aurèle Meissonnier
Desenho de cadeira de Aurèle Meissonnier
Cômoda dos irmãos Caffieri,
Cômoda dos irmãos Caffieri,

O desejo por superfícies ornamentadas


Nesse momento, a estamparia europeia começa a ganhar força impulsionada por dois fatores principais: o fascínio pelas estampas exóticas vindas da Ásia e os avanços técnicos nos métodos de impressão sobre tecido. Técnicas como o uso de moldes entalhados em madeira (block printing), que permitiam repetir padrões ornamentais com certa precisão, começaram a se espalhar entre os ateliês europeus. Ao mesmo tempo, a demanda por superfícies decoradas crescia vertiginosamente — não só nos palácios, mas também nos vestidos, nas cortinas, nos papéis de parede e nos objetos domésticos. A ornamentação, antes reservada a tapeçarias e bordados, agora se expandia graças à possibilidade de ser impressa diretamente nos tecidos.


Mas o grande objeto de desejo da época não era europeu: era o chintz indiano. Tecidos vindos da Índia, estampados com padrões florais riquíssimos, tingidos à mão com técnicas sofisticadas de fixação vegetal que resistiam ao tempo e às lavagens. Eram leves, coloridos, e delicadamente ornamentados — perfeitos para a nova sensibilidade do Rococó.


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O sucesso foi tanto que a importação de chintz chegou a ser proibida em vários países da Europa por mais de 70 anos, numa tentativa de proteger a indústria local. Durante esse período, surgiram inúmeras tentativas de copiar o chintz e criar estampas semelhantes. Isso impulsionou a criação de centros têxteis em Nantes, Lyon, Jouy-en-Josas (França) e Manchester (Inglaterra) — onde surgiram os primeiros laboratórios de estamparia europeia.


Foi aí que a Europa começou a desenvolver suas primeiras coleções de estamparia decorativa, movida pelo desejo de reproduzir — e competir com — os luxuosos tecidos orientais. Os padrões florais do chintz, os arabescos asiáticos e a riqueza cromática dessas peças se tornaram obsessão dos ateliês europeus. Copiar técnicas, adaptar paletas e reinventar esses motivos sob um olhar ocidental foi a estratégia encontrada para atender à demanda sem depender das importações proibidas. Mais do que uma simples imitação, esse movimento deu início a um novo capítulo na história da estampa: o da apropriação e reinterpretação dos ornamentos vindos do Oriente.


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Tecidos produzidos e estampados na Europa.
Tecidos produzidos e estampados na Europa.

Maria Antonieta: a rainha que pôs a beleza em primeiro lugar


No centro dessa estética encantada estava Maria Antonieta.


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Vinda da Áustria, Maria Antonieta se casou com Luís XVI aos 14 anos, como parte de uma aliança política entre as duas nações. Chegou à França ainda adolescente, sem domínio do idioma e dos costumes locais, e passou anos se sentindo deslocada na corte de Versalhes — um ambiente repleto de formalidades rígidas, disputas veladas e solidão. A maternidade demorou a acontecer, e mesmo após o nascimento dos filhos, ela parecia seguir em busca de algo que a tirasse da rigidez de seu papel.


Sua válvula de escape foi a estética. Com gosto apurado e um olhar quase teatral para a aparência, transforma Versalhes em uma passarela viva. Suas aparições eram cuidadosamente encenadas: vestidos gigantescos com estruturas internas absurdas, penteados monumentais que podiam ultrapassar um metro de altura e até mesmo fantasias pastorais, onde se vestia de camponesa refinada em cenários criados apenas para posar.


Ela lançava tendências como quem lança decretos — e, ainda que não intencionalmente política, sua estética moldava a percepção pública da monarquia. Ao transformar sua imagem em espetáculo, Maria Antonieta reforçava a distância entre a corte e o povo, tornando-se símbolo máximo de um poder que se ocupava mais de si mesmo do que da nação. Mais do que seguir a moda: ela performava a imagem da realeza com uma exuberância sem precedentes.


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Em certa medida, Maria Antonieta pode ser vista como uma das primeiras grandes "influenciadoras" da história — não no sentido atual das redes sociais, mas como uma figura cuja imagem pessoal moldava comportamentos e desejos da elite europeia. Seus penteados e vestidos extravagantes eram copiados por outras damas da corte, suas escolhas estéticas viravam tendência e seu estilo de vida criava uma narrativa aspiracional poderosa. Sua influência ultrapassava o vestuário: ela ditava o gosto de uma era inteira.


Mas, como toda fantasia que ignora a realidade, essa também teve seu preço — e ele seria cobrado com veemência.


A revolta


A estética que antes encantava passou a incomodar. O que era delicadeza virou sinal de alienação. O excesso, que antes impressionava, virou insulto — especialmente para quem via, do lado de fora dos portões de Versalhes, uma corte entretida com fitas e perucas enquanto o pão faltava na mesa.


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Maria Antonieta e o rei Luís XVI foram guilhotinados durante a Revolução Francesa — e o Rococó, por muito tempo, foi apagado da história como se fosse apenas um estilo fútil e irresponsável.


O valor do sensível


Viver de forma hedonista e equilibrada talvez seja um dos maiores sonhos humanos — uma utopia, quem sabe. Afinal, o que é o paraíso prometido pela Igreja senão a imagem de um lugar leve, belo e abundante? Um jardim onde tudo floresce, onde o tempo é generoso, onde o prazer não é pecado, mas recompensa.


Claro, ainda não vivemos nesse paraíso. Mas seguimos tentando. E, por ora, o que conseguimos sustentar — entre pressões e crises  — é uma estética que resiste. Uma escolha quase silenciosa de encontrar beleza no ordinário. E isso já é muito.


Porque o desejo pelo belo não é um capricho. É um lembrete poderoso de que o sensível também sustenta a vida. A valorização do toque, da cor, do gesto — não é futilidade. É humanidade.


O Rococó, com todos os seus excessos, também falou disso. De um modo talvez escapista, mas ainda assim legítimo. Foi uma forma de afirmar que o prazer, o afeto, o detalhe e o encantamento merecem existir. Mesmo quando o mundo lá fora grita outra coisa.


Se a gente olhar com atenção, ainda encontramos vestígios desse impulso em cada arabesco de um vestido, no floral delicado de um tecido, na porcelana pintada à mão — ou simplesmente no desejo teimoso de viver uma vida bonita. Por dentro e por fora.

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