top of page

NÃO É SÓ UMA ESTAMPA.
 

Neste blog, tudo gira em torno do que se imprime — na superfície e no olhar.

Do ornamento ancestral às estratégias visuais das marcas de moda da atualidade, cada post é um convite a enxergar além do óbvio.

Porque estampa, quando bem pensada, é muito mais do que estética: é cultura que se perpetua na superfície. É discurso visual com cores, alma e intenção estética. É estratégia para marcas que sabem o valor de comunicar com identidade.

Se a estampa também faz seu coração bater mais forte, vem comigo: esse blog foi feito pra você.

Navegue, explore e se permita ver além.

Este texto faz parte da série A Evolução do Ornamento, em que investigo como diferentes movimentos estéticos, culturais e simbólicos moldaram nossa relação com o gesto de ornamentar — da arquitetura à estamparia, da arte à moda.


No episodio 02, o foco é o Rococó, estilo que nasceu da vontade de suavizar os exageros do Barroco e acabou se tornando a expressão sofisticada de um prazer desvinculado da realidade.


ree

O que veio antes: quando o exagero saiu do altar


Para entender o Rococó, é preciso olhar para o que veio antes: o Barroco. Com sua dramaticidade carregada, foi usado pela Igreja como uma linguagem de fé e encantamento e, logo depois, pelos monarcas como linguagem de poder.


Com o passar das décadas, os excessos do Barroco perderam o vínculo com a fé e passaram a expressar apenas o acúmulo e o poder. Os ambientes, carregados de ouro, sombras e dramaticidade, começaram a parecer opressivos e pesados. A aristocracia, já distante das funções religiosas, passou a desejar uma estética que refletisse seus próprios prazeres terrenos: espaços mais claros, gestos mais leves, e um cotidiano que celebrasse o conforto. Foi nesse contexto que o hedonismo se impôs como um novo ideal — e com ele, uma nova linguagem ornamental.


BARROCO X ROCOCÓ
BARROCO X ROCOCÓ

Hedonismo: a filosofia do prazer refinado


Segundo o dicionário, hedonismo é a doutrina que afirma o prazer como bem supremo da vida. No século XVIII, essa filosofia se traduziu em práticas muito concretas: salões aconchegantes onde se discutia arte e fofoca, jardins perfumados para passeios ociosos, porcelanas decoradas até nos mínimos detalhes, vestidos com rendas e bordados, tecidos leves que dançavam com o corpo. Era uma busca constante por satisfação sensorial, deleite estético e pequenos prazeres cotidianos.


ree

Essa nova sensibilidade moldou não apenas o comportamento da aristocracia, mas também se refletiu nas formas com que decoravam e representavam o mundo ao seu redor: das escolhas arquitetônicas aos móveis entalhados, dos objetos do dia a dia às roupas ricamente adornadas. Nesse contexto, o ornamento deixou de servir a narrativas religiosas ou políticas e passou a celebrar, acima de tudo, o prazer visual.


ree

O rococó como linguagem visual: curvas, conchas e cor pastel


Visualmente, o Rococó escolheu a leveza e o encantamento. Trouxe uma estética mais fluida, íntima e ornamental, feita para agradar aos sentidos e encantar nos detalhes.


  • Linhas curvas e assimétricas, que pareciam dançar pelas paredes;

  • Arabescos dourados, inspirados em folhas, conchas e ondas;

  • Flores miúdas e delicadas, em composições decorativas que fluíam organicamente;

  • Cores claras, como rosa pálido, azul celeste, verde menta e dourado suave — que dominavam tanto a decoração quanto a moda;

  • Motivos pastorais e amorosos, com cenas da natureza idealizada e da vida galante.


Na arquitetura, o estilo Rococó se espalhou principalmente por palácios e residências aristocráticas. Na França, o Petit Trianon e os aposentos de Maria Antonieta em Versalhes são exemplos icônicos. Na Alemanha, o Palácio de Würzburg e a Igreja Wieskirche traduzem esse espírito decorativo com maestria.


Petit Trianon, Um refúgio íntimo de Maria Antonieta dentro da opulência de Versalhes.
Petit Trianon, Um refúgio íntimo de Maria Antonieta dentro da opulência de Versalhes.
Aposentos de Maria Antonieta, em Versalhes.
Aposentos de Maria Antonieta, em Versalhes.
Salão Imperial do Palácio de Würzburg, Alemanha
Salão Imperial do Palácio de Würzburg, Alemanha
Órgão da Igreja de Wieskirche, Alemanha.. Uma das raras expressões do Rococó em espaços religiosos.
Órgão da Igreja de Wieskirche, Alemanha.. Uma das raras expressões do Rococó em espaços religiosos.

Apesar de algumas exceções, como essa última, poucas igrejas adotaram plenamente o estilo Rococó. A leveza e sensualidade da linguagem visual não agradaram à Igreja, que via esse refinamento hedonista com certa desconfiança. Por isso, o Rococó acabou se consolidando mais como uma estética profana — dedicada à vida aristocrática, ao lazer e ao prazer, e menos ao sagrado.


Na pintura, artistas como Jean-Honoré Fragonard e François Boucher criaram cenas idílicas de amantes em jardins, de mulheres lendo cartas perfumadas, de ninfas e cupidos em meio a flores. Já na escultura e na marcenaria, nomes como Juste-Aurèle Meissonnier e os irmãos Caffieri produziram ornamentos exuberantes e móveis em estilo “rocaille”.


"O Balanço", de Jean-Honoré Fragonard. Flertes, flores e frivolidade.
"O Balanço", de Jean-Honoré Fragonard. Flertes, flores e frivolidade.
"Diana e Endimião", de François Boucher
"Diana e Endimião", de François Boucher
Desenho de cadeira de Aurèle Meissonnier
Desenho de cadeira de Aurèle Meissonnier
Cômoda dos irmãos Caffieri,
Cômoda dos irmãos Caffieri,

O desejo por superfícies ornamentadas


Nesse momento, a estamparia europeia começa a ganhar força impulsionada por dois fatores principais: o fascínio pelas estampas exóticas vindas da Ásia e os avanços técnicos nos métodos de impressão sobre tecido. Técnicas como o uso de moldes entalhados em madeira (block printing), que permitiam repetir padrões ornamentais com certa precisão, começaram a se espalhar entre os ateliês europeus. Ao mesmo tempo, a demanda por superfícies decoradas crescia vertiginosamente — não só nos palácios, mas também nos vestidos, nas cortinas, nos papéis de parede e nos objetos domésticos. A ornamentação, antes reservada a tapeçarias e bordados, agora se expandia graças à possibilidade de ser impressa diretamente nos tecidos.


Mas o grande objeto de desejo da época não era europeu: era o chintz indiano. Tecidos vindos da Índia, estampados com padrões florais riquíssimos, tingidos à mão com técnicas sofisticadas de fixação vegetal que resistiam ao tempo e às lavagens. Eram leves, coloridos, e delicadamente ornamentados — perfeitos para a nova sensibilidade do Rococó.


ree
ree

O sucesso foi tanto que a importação de chintz chegou a ser proibida em vários países da Europa por mais de 70 anos, numa tentativa de proteger a indústria local. Durante esse período, surgiram inúmeras tentativas de copiar o chintz e criar estampas semelhantes. Isso impulsionou a criação de centros têxteis em Nantes, Lyon, Jouy-en-Josas (França) e Manchester (Inglaterra) — onde surgiram os primeiros laboratórios de estamparia europeia.


Foi aí que a Europa começou a desenvolver suas primeiras coleções de estamparia decorativa, movida pelo desejo de reproduzir — e competir com — os luxuosos tecidos orientais. Os padrões florais do chintz, os arabescos asiáticos e a riqueza cromática dessas peças se tornaram obsessão dos ateliês europeus. Copiar técnicas, adaptar paletas e reinventar esses motivos sob um olhar ocidental foi a estratégia encontrada para atender à demanda sem depender das importações proibidas. Mais do que uma simples imitação, esse movimento deu início a um novo capítulo na história da estampa: o da apropriação e reinterpretação dos ornamentos vindos do Oriente.


ree
ree
ree
Tecidos produzidos e estampados na Europa.
Tecidos produzidos e estampados na Europa.

Maria Antonieta: a rainha que pôs a beleza em primeiro lugar


No centro dessa estética encantada estava Maria Antonieta.


ree

Vinda da Áustria, Maria Antonieta se casou com Luís XVI aos 14 anos, como parte de uma aliança política entre as duas nações. Chegou à França ainda adolescente, sem domínio do idioma e dos costumes locais, e passou anos se sentindo deslocada na corte de Versalhes — um ambiente repleto de formalidades rígidas, disputas veladas e solidão. A maternidade demorou a acontecer, e mesmo após o nascimento dos filhos, ela parecia seguir em busca de algo que a tirasse da rigidez de seu papel.


Sua válvula de escape foi a estética. Com gosto apurado e um olhar quase teatral para a aparência, transforma Versalhes em uma passarela viva. Suas aparições eram cuidadosamente encenadas: vestidos gigantescos com estruturas internas absurdas, penteados monumentais que podiam ultrapassar um metro de altura e até mesmo fantasias pastorais, onde se vestia de camponesa refinada em cenários criados apenas para posar.


Ela lançava tendências como quem lança decretos — e, ainda que não intencionalmente política, sua estética moldava a percepção pública da monarquia. Ao transformar sua imagem em espetáculo, Maria Antonieta reforçava a distância entre a corte e o povo, tornando-se símbolo máximo de um poder que se ocupava mais de si mesmo do que da nação. Mais do que seguir a moda: ela performava a imagem da realeza com uma exuberância sem precedentes.


ree
ree

Em certa medida, Maria Antonieta pode ser vista como uma das primeiras grandes "influenciadoras" da história — não no sentido atual das redes sociais, mas como uma figura cuja imagem pessoal moldava comportamentos e desejos da elite europeia. Seus penteados e vestidos extravagantes eram copiados por outras damas da corte, suas escolhas estéticas viravam tendência e seu estilo de vida criava uma narrativa aspiracional poderosa. Sua influência ultrapassava o vestuário: ela ditava o gosto de uma era inteira.


Mas, como toda fantasia que ignora a realidade, essa também teve seu preço — e ele seria cobrado com veemência.


A revolta


A estética que antes encantava passou a incomodar. O que era delicadeza virou sinal de alienação. O excesso, que antes impressionava, virou insulto — especialmente para quem via, do lado de fora dos portões de Versalhes, uma corte entretida com fitas e perucas enquanto o pão faltava na mesa.


ree

Maria Antonieta e o rei Luís XVI foram guilhotinados durante a Revolução Francesa — e o Rococó, por muito tempo, foi apagado da história como se fosse apenas um estilo fútil e irresponsável.


O valor do sensível


Viver de forma hedonista e equilibrada talvez seja um dos maiores sonhos humanos — uma utopia, quem sabe. Afinal, o que é o paraíso prometido pela Igreja senão a imagem de um lugar leve, belo e abundante? Um jardim onde tudo floresce, onde o tempo é generoso, onde o prazer não é pecado, mas recompensa.


Claro, ainda não vivemos nesse paraíso. Mas seguimos tentando. E, por ora, o que conseguimos sustentar — entre pressões e crises  — é uma estética que resiste. Uma escolha quase silenciosa de encontrar beleza no ordinário. E isso já é muito.


Porque o desejo pelo belo não é um capricho. É um lembrete poderoso de que o sensível também sustenta a vida. A valorização do toque, da cor, do gesto — não é futilidade. É humanidade.


O Rococó, com todos os seus excessos, também falou disso. De um modo talvez escapista, mas ainda assim legítimo. Foi uma forma de afirmar que o prazer, o afeto, o detalhe e o encantamento merecem existir. Mesmo quando o mundo lá fora grita outra coisa.


Se a gente olhar com atenção, ainda encontramos vestígios desse impulso em cada arabesco de um vestido, no floral delicado de um tecido, na porcelana pintada à mão — ou simplesmente no desejo teimoso de viver uma vida bonita. Por dentro e por fora.

 

Toda estampa nasce de um gesto antigo: o de ornamentar. Essa é a frase que abre todos os episódios da nossa série — A Evolução do Ornamento — e não é à toa. Porque é nesse gesto, tão ancestral quanto humano, que a gente encontra a raiz da nossa investigação.


Hoje nós vamos falar sobre o Barroco, o estilo que fez a Europa lembrar que o que se vê pode ser tão poderoso quanto o que se diz. E essa frase não é só bonita, ela marca um ponto de virada. Foi no Barroco que o ornamento deixou de só contornar e voltou a conectar. Voltou a ser protagonista em uma sociedade onde a comunicação visual sempre existiu, mesmo antes da escrita.


Por isso, antes da gente entrar de vez no Barroco, vale lembrar: o ornamento já brilhava há milênios, inclusive no Ocidente. No Egito, na Mesopotâmia, na Grécia e em Roma, ele era carregado de significados — políticos, espirituais, sociais. Estava presente no cotidiano, nos rituais, na arquitetura e na indumentária. Era uma linguagem visual viva, profundamente ligada às tradições pagãs, que celebravam os ciclos da natureza, os deuses e o corpo.


Ornamento Celta - imagem do livro 'A gramática do ornamento" de Owen Jones.
Ornamento Celta - imagem do livro 'A gramática do ornamento" de Owen Jones.
Ornamento Egípcio -  imagem do livro 'A gramática do ornamento" de Owen Jones.
Ornamento Egípcio -  imagem do livro 'A gramática do ornamento" de Owen Jones.


Detalhe esculpido em marmore na faixada de um templo em Athenas datado de 407 A.C.
Detalhe esculpido em marmore na faixada de um templo em Athenas datado de 407 A.C.

Com a queda do Império Romano, no século V, tudo isso começou a mudar. O Ocidente mergulhou na Idade Média e passou a ser dominado pela Igreja Católica, que precisava consolidar sua doutrina sobre um território culturalmente diverso. Para isso, silenciou as crenças anteriores, apagou os rituais e símbolos dos povos que ali viviam. E junto com eles, sumiram também os ornamentos que contavam aquelas histórias.


A estética que restou era enxuta, direta, funcional. Não porque o ornamento tivesse sido proibido, mas porque o repertório visual disponível para servir à fé cristã não existia. O ornamento foi reduzido a algo que emoldurava o discurso, mas não se atrevia a dizer por conta própria.


Basílica de Sainte-Foy, localizada em Conques, França, século XI
Basílica de Sainte-Foy, localizada em Conques, França, século XI
Abadia de Sant"Antimo, na Italia, século IX
Abadia de Sant"Antimo, na Italia, século IX

Isso só começou a mudar quando a fé entrou em crise.


No século XVI, a Reforma Protestante abalou a autoridade da Igreja Católica. Acusada de corrupção e ostentação, ela perdeu fiéis, poder e influência. O discurso já não bastava. As palavras não davam mais conta. Era preciso algo que tocasse o coração.


Foi aí que a Igreja começou a entender o poder do encantamento visual. Porque o olhar é um portal. Quando a gente vê algo bonito, grandioso, intenso — o corpo sente. O olho brilha. A pele arrepia. A emoção precede a razão. E o ornamento faz exatamente isso: ele não explica, ele seduz. Ele envolve.


Assim, aos poucos, as igrejas começaram a se transformar. Esculturas com véus esculpidos no mármore, anjos em êxtase, altares dourados, luz entrando em feixes. Tudo pensado para emocionar. O barroco não nasceu com nome, ele surgiu no entalhe, no pincel. Como uma nova linguagem: sensorial, dramática e arrebatadora.


Anjos do escultor Bernini, na Ponte Sant'Angelo em Roma, Sec XVII
Anjos do escultor Bernini, na Ponte Sant'Angelo em Roma, Sec XVII
Interior de Il Gesu, em Roma, contruída entre 1558 e 1564.
Interior de Il Gesu, em Roma, contruída entre 1558 e 1564.
Afresco de Andrea Pozzo, na Igreja de Sant'Ignazio, em Roma
Afresco de Andrea Pozzo, na Igreja de Sant'Ignazio, em Roma

A fé virou cena. A emoção virou estratégia. E não demorou para a aristocracia perceber. Se funcionava para Deus, por que não funcionaria para o rei?


Luís XIV, por exemplo, construiu o Palácio de Versalhes como uma igreja política. Fez do seu trono um altar. E de si mesmo, o centro do universo. O barroco virou marketing — uma ferramenta de dominação e espetáculo.


Retrato de Luis XIV
Retrato de Luis XIV
Interior do palácio de Versalhes
Interior do palácio de Versalhes
Detalhes de Versalhes
Detalhes de Versalhes
Detalhes de Versalhes
Detalhes de Versalhes

Na arquitetura, outras obras como a Basílica de São Pedro, no Vaticano, traduzem essa estética. Na pintura e na escultura, artistas como Caravaggio, Bernini e Rubens incorporaram movimento, teatralidade e profundidade emocional. Objetos decorativos, móveis entalhados e padronagens complexas marcaram o design da época. Era uma experiência sensorial completa — e o ornamento estava no centro da comunicação visual.


Trono de São Pedro, no Vaticano.
Trono de São Pedro, no Vaticano.
Sette opere di Misericordia, Oleo sobre tela,  Caravaggio., 1607.
Sette opere di Misericordia, Oleo sobre tela, Caravaggio., 1607.
A queda dos condenados, óleo sobre tela. Peter Paul Rubens, 1602.
A queda dos condenados, óleo sobre tela. Peter Paul Rubens, 1602.

No campo dos têxteis, o barroco também representou uma virada. Tecidos deixaram de ser apenas suporte e passaram a ser protagonistas. Os desenhos ainda não eram impressos, mas tecidos diretamente na trama ou bordados em relevo. Técnicas como damascos com fios metálicos, tapeçarias complexas e bordados exuberantes foram valorizadas como expressão artística e espiritual. Folhagens, arabescos, flores, cruzes: os padrões buscavam impacto. O que antes era adorno virou narrativa. Pela primeira vez, havia uma coordenação estética intencional entre arquitetura, vestuário, decoração e tecidos. A estampa — ainda sem esse nome — já cumpria o papel de contar histórias pela superfície.

Fragmento de vestido barroco, Itália, final do século 17, seda com efeito damasco - Galeria de Têxteis e Vestuário Patricia Harris, Museu Real de Ontário
Fragmento de vestido barroco, Itália, final do século 17, seda com efeito damasco - Galeria de Têxteis e Vestuário Patricia Harris, Museu Real de Ontário
Seda Francesa do século XVII.
Seda Francesa do século XVII.

Mas o barroco não ficou restrito à elite. Mesmo sem acesso ao ouro ou aos artistas da corte, o povo desejava aquela estética. E esse desejo se espalhou. Os bordados populares foram ficando mais preenchidos, as festas mais enfeitadas, os santos nas casas passaram a ganhar flores, dourados, arabescos. O barroco entrava pelas beiradas, com o que era possível: tecido, cor, fé, emoção e criatividade.


Procissão de Corpus Christi na Europa do século XVII: a fé popular encontrando sua linguagem visual.
Procissão de Corpus Christi na Europa do século XVII: a fé popular encontrando sua linguagem visual.
Arabescos e cor sobre o linho: ornamentação popular que ecoa o desejo do barroco além dos palácios.
Arabescos e cor sobre o linho: ornamentação popular que ecoa o desejo do barroco além dos palácios.

Assim, o Barroco atravessou os oceanos. Chegou às Américas com toda a sua pompa — mas encontrou outro terreno. Aqui, o barroco, em vez de se impor, se misturou. Ganhou cor, ganhou fé popular, ganhou sincretismo.


Cada lugar foi criando sua própria estética barroca. No Peru, o barroco andino combinou elementos indígenas com o catolicismo europeu em igrejas ricamente decoradas em Cusco e Arequipa. No Equador, a cidade de Quito se tornou um dos maiores polos dessa estética, com interiores revestidos de ouro e dramaticidade. Bolívia, Colômbia, Cuba e outros países também desenvolveram versões híbridas e exuberantes do barroco, sempre marcadas pelo sincretismo e pela emoção.


No Peru, o Barroco andino combinou os elementos indígenas com o catolicismo europeu.
No Peru, o Barroco andino combinou os elementos indígenas com o catolicismo europeu.
No Equador, a cidade de Kipa se tornou um dos maiores polos da estética, com interiores revestidos de ouro e dramaticidade.
No Equador, a cidade de Kipa se tornou um dos maiores polos da estética, com interiores revestidos de ouro e dramaticidade.

No México, essa linguagem visual encontrou, na minha opinião, uma de suas manifestações mais vibrantes. Nos milagritos, nos ex-votos, nos relicários populares e nos altares coloridos, sinto o barroco vibrando em forma de afeto. Tudo é pequeno e grandioso ao mesmo tempo: cor, brilho, devoção, gesto. O ornamento ali não é só beleza — é proteção, memória, promessa. É um barroco íntimo, simbólico e vivo, que me atravessa como artista e me inspira como pessoa.


O Templo de San Francisco de Acatepec, no México é um dos ícones do Barroco Mestiço.
O Templo de San Francisco de Acatepec, no México é um dos ícones do Barroco Mestiço.
Ex-voto Século XVIII Sagrado Coração com pequenas medalhas de  A Imaculada Conceição, São Vicente Ferrer, Sagrado Coração e Virgem.
Ex-voto Século XVIII Sagrado Coração com pequenas medalhas de A Imaculada Conceição, São Vicente Ferrer, Sagrado Coração e Virgem.

No Brasil, em Minas Gerais, durante o ciclo do ouro no século XVIII, o barroco encontrou solo fértil para florescer. Igrejas como a de São Francisco de Assis, em Ouro Preto, e o Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas, mostram como a estética foi absorvida e reinventada localmente. Artistas como Aleijadinho — à frente de ateliês compostos por negros, indígenas e mestiços — criaram um barroco mestiço, profundamente brasileiro. A arte sacra ganhou volume e intensidade. Altares entalhados, santos dramáticos, estruturas feitas de pedra e fé.


Escultura de Aleijadinho em Minas Gerais.
Escultura de Aleijadinho em Minas Gerais.

Mas, como na Europa, ele também foi morar na cultura. Nas festas populares, ele encontrou abrigo e expansão. As celebrações religiosas e profanas passaram a incorporar bandeirinhas, estandartes bordados, arcos florais, imagens decoradas com fitas e tecidos coloridos. Tudo era motivo para ornamentar: as ruas, os corpos, os rituais. O barroco virou linguagem sensível, emocional, coletiva.


E aqui, ele ficou. O rococó mal tocou esse lado do oceano — assim como o neoclássico e outras correntes que ganharam força na Europa nos séculos seguintes. Isso porque, nas Américas, sobretudo nas colônias, o barroco não foi apenas um estilo estético: ele se enraizou como linguagem emocional e religiosa. As estruturas sociais e culturais eram outras. O barroco aqui atendia a uma necessidade real de expressão afetiva, de sincretismo, de festa. Além disso, a distância geográfica e o ritmo mais lento da circulação de ideias e modas contribuíram para que as novas tendências europeias demorassem (ou simplesmente não encontrassem espaço) para se estabelecer. Enquanto lá se buscava a razão, aqui ainda se precisava do encanto. E o barroco seguia servindo — como arte, como fé, como cultura viva. Por isso, o exagero virou raiz.


Festa do Círio de Nazaré, em Belém.
Festa do Círio de Nazaré, em Belém.

O barroco foi um divisor de águas. Ele reposicionou o ornamento como potência visual. Influenciou a maneira como as pessoas viviam, rezavam, se vestiam e se expressavam. Mais do que estética, o ornamento virou fé, poder, identidade. E deixou marcas profundas na história — que a gente segue desvendando por aqui, camada por camada.


No próximo episódio, seguimos cavando: do barroco ao rococó — quando o exagero virou brincadeira. E o ornamento ganhou leveza, mas não perdeu a pose.

 


ree

Antes de qualquer coisa, é importante lembrar: o ornamento não nasceu no Ocidente. Povos originários de todas as partes do mundo — inclusive da própria Europa pré-cristã — sempre usaram formas, cores e padrões para expressar mundos. Criaram superfícies que protegiam, encantavam e transmitiam símbolos de geração em geração. São essas culturas que formam minha maior fonte de inspiração.


Mas nesta série, escolhi fazer um recorte específico: observar como o Ocidente — especialmente dentro da lógica moderna e eurocentrada — passou a se relacionar com o ornamento ao longo do tempo, a partir de um ponto de virada simbólico: o Barroco.


Aqui, é importante fazer uma distinção. O que chamamos de "história ocidental do ornamento" não começa com o ornamento em si — porque ele já existia muito antes. O que começa, na verdade, é uma tentativa de organizar e classificar esse gesto visual a partir de uma lógica cristã, colonial e racionalizante. Uma história contada desde quando a Igreja passa a dominar os territórios europeus e silenciar os símbolos das culturas pagãs. Ou seja: esse percurso que vamos seguir não é neutro. Ele já nasce recortado, com todas as intenções e ausências que isso carrega.


Ainda assim, esse recorte é potente.


Porque revela como o Ocidente passou séculos entre o fascínio e o desprezo pelo ornamento — ora o colocando no centro da expressão estética, ora o acusando de excesso. E é nesse vai e vem, cheio de rupturas, resgates e contradições, que a nossa série mergulha.


Vamos observar como, a partir do Barroco, o ornamento deixa de ser só moldura e vira mensagem. Como ele se transforma em linguagem emocional, política, simbólica. E como essa linguagem foi sendo renegada, redescoberta e reinventada até os dias de hoje.


🌀 Nossa Linha do Tempo


Uma viagem por 10 movimentos visuais que marcaram a história do ornamento ocidental:


1. Barroco (séc. XVII) — Emoção, ouro e excesso. O ornamento como fé e espetáculo.


2. Rococó (séc. XVIII) — O exagero ganha leveza. Estética como intimidade e prazer.


3. Neoclassicismo (fins do XVIII - início do XIX) — Ordem, razão, limpeza. O ornamento volta pra moldura.


4. Romantismo e Revivalismos (XIX) — Nostalgia histórica. Citações do gótico, medieval e oriental.


5. Arts and Crafts (segunda metade do XIX)— O feito à mão como resistência estética e ética.


6. Art Nouveau (fins do XIX - início do XX) — Curvas sensuais, natureza e ornamentação autoral.


7. Art Déco (déc. 20–30) — Geometria, simetria e luxo gráfico.


8. Modernismo (séc. XX) — A rejeição. “Ornamento é crime”: o auge do minimalismo funcional.


9. Pós-modernismo (déc. 70 em diante) — Resgate irônico e plural. O ornamento volta com outras intenções.


10. Digital e Contemporâneo (2000 até hoje) — Superfícies infinitas, cultura remix e liberdade estética.


Curiosa pra entender como o ornamento se tornou parte essencial da nossa linguagem visual — e por que, em tantos momentos, ele foi silenciado?


O primeiro episódio sai amanhã — vem comigo nessa jornada onde forma, história e expressão caminham juntas.

 

Receba esse conteúdo por e-mail.

Nada de Spam, só estampas ;)

© 2023 por Artista Urbano. Criado orgulhosamente com Wix.com

bottom of page