Ep 01 - A evolução do Ornamento — Barroco: a virada da estética ocidental
- Caru Valverde
- Jun 27
- 6 min read
Updated: 22 hours ago
Toda estampa nasce de um gesto antigo: o de ornamentar. Essa é a frase que abre todos os episódios da nossa série — A Evolução do Ornamento — e não é à toa. Porque é nesse gesto, tão ancestral quanto humano, que a gente encontra a raiz da nossa investigação.
Hoje nós vamos falar sobre o Barroco, o estilo que fez a Europa lembrar que o que se vê pode ser tão poderoso quanto o que se diz. E essa frase não é só bonita, ela marca um ponto de virada. Foi no Barroco que o ornamento deixou de só contornar e voltou a conectar. Voltou a ser protagonista em uma sociedade onde a comunicação visual sempre existiu, mesmo antes da escrita.
Por isso, antes da gente entrar de vez no Barroco, vale lembrar: o ornamento já brilhava há milênios, inclusive no Ocidente. No Egito, na Mesopotâmia, na Grécia e em Roma, ele era carregado de significados — políticos, espirituais, sociais. Estava presente no cotidiano, nos rituais, na arquitetura e na indumentária. Era uma linguagem visual viva, profundamente ligada às tradições pagãs, que celebravam os ciclos da natureza, os deuses e o corpo.



Com a queda do Império Romano, no século V, tudo isso começou a mudar. O Ocidente mergulhou na Idade Média e passou a ser dominado pela Igreja Católica, que precisava consolidar sua doutrina sobre um território culturalmente diverso. Para isso, silenciou as crenças anteriores, apagou os rituais e símbolos dos povos que ali viviam. E junto com eles, sumiram também os ornamentos que contavam aquelas histórias.
A estética que restou era enxuta, direta, funcional. Não porque o ornamento tivesse sido proibido, mas porque o repertório visual disponível para servir à fé cristã não existia. O ornamento foi reduzido a algo que emoldurava o discurso, mas não se atrevia a dizer por conta própria.


Isso só começou a mudar quando a fé entrou em crise.
No século XVI, a Reforma Protestante abalou a autoridade da Igreja Católica. Acusada de corrupção e ostentação, ela perdeu fiéis, poder e influência. O discurso já não bastava. As palavras não davam mais conta. Era preciso algo que tocasse o coração.
Foi aí que a Igreja começou a entender o poder do encantamento visual. Porque o olhar é um portal. Quando a gente vê algo bonito, grandioso, intenso — o corpo sente. O olho brilha. A pele arrepia. A emoção precede a razão. E o ornamento faz exatamente isso: ele não explica, ele seduz. Ele envolve.
Assim, aos poucos, as igrejas começaram a se transformar. Esculturas com véus esculpidos no mármore, anjos em êxtase, altares dourados, luz entrando em feixes. Tudo pensado para emocionar. O barroco não nasceu com nome, ele surgiu no entalhe, no pincel. Como uma nova linguagem: sensorial, dramática e arrebatadora.



A fé virou cena. A emoção virou estratégia. E não demorou para a aristocracia perceber. Se funcionava para Deus, por que não funcionaria para o rei?
Luís XIV, por exemplo, construiu o Palácio de Versalhes como uma igreja política. Fez do seu trono um altar. E de si mesmo, o centro do universo. O barroco virou marketing — uma ferramenta de dominação e espetáculo.




Na arquitetura, outras obras como a Basílica de São Pedro, no Vaticano, traduzem essa estética. Na pintura e na escultura, artistas como Caravaggio, Bernini e Rubens incorporaram movimento, teatralidade e profundidade emocional. Objetos decorativos, móveis entalhados e padronagens complexas marcaram o design da época. Era uma experiência sensorial completa — e o ornamento estava no centro da comunicação visual.



No campo dos têxteis, o barroco também representou uma virada. Tecidos deixaram de ser apenas suporte e passaram a ser protagonistas. Os desenhos ainda não eram impressos, mas tecidos diretamente na trama ou bordados em relevo. Técnicas como damascos com fios metálicos, tapeçarias complexas e bordados exuberantes foram valorizadas como expressão artística e espiritual. Folhagens, arabescos, flores, cruzes: os padrões buscavam impacto. O que antes era adorno virou narrativa. Pela primeira vez, havia uma coordenação estética intencional entre arquitetura, vestuário, decoração e tecidos. A estampa — ainda sem esse nome — já cumpria o papel de contar histórias pela superfície.


Mas o barroco não ficou restrito à elite. Mesmo sem acesso ao ouro ou aos artistas da corte, o povo desejava aquela estética. E esse desejo se espalhou. Os bordados populares foram ficando mais preenchidos, as festas mais enfeitadas, os santos nas casas passaram a ganhar flores, dourados, arabescos. O barroco entrava pelas beiradas, com o que era possível: tecido, cor, fé, emoção e criatividade.


Assim, o Barroco atravessou os oceanos. Chegou às Américas com toda a sua pompa — mas encontrou outro terreno. Aqui, o barroco, em vez de se impor, se misturou. Ganhou cor, ganhou fé popular, ganhou sincretismo.
Cada lugar foi criando sua própria estética barroca. No Peru, o barroco andino combinou elementos indígenas com o catolicismo europeu em igrejas ricamente decoradas em Cusco e Arequipa. No Equador, a cidade de Quito se tornou um dos maiores polos dessa estética, com interiores revestidos de ouro e dramaticidade. Bolívia, Colômbia, Cuba e outros países também desenvolveram versões híbridas e exuberantes do barroco, sempre marcadas pelo sincretismo e pela emoção.


No México, essa linguagem visual encontrou, na minha opinião, uma de suas manifestações mais vibrantes. Nos milagritos, nos ex-votos, nos relicários populares e nos altares coloridos, sinto o barroco vibrando em forma de afeto. Tudo é pequeno e grandioso ao mesmo tempo: cor, brilho, devoção, gesto. O ornamento ali não é só beleza — é proteção, memória, promessa. É um barroco íntimo, simbólico e vivo, que me atravessa como artista e me inspira como pessoa.


No Brasil, em Minas Gerais, durante o ciclo do ouro no século XVIII, o barroco encontrou solo fértil para florescer. Igrejas como a de São Francisco de Assis, em Ouro Preto, e o Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas, mostram como a estética foi absorvida e reinventada localmente. Artistas como Aleijadinho — à frente de ateliês compostos por negros, indígenas e mestiços — criaram um barroco mestiço, profundamente brasileiro. A arte sacra ganhou volume e intensidade. Altares entalhados, santos dramáticos, estruturas feitas de pedra e fé.

Mas, como na Europa, ele também foi morar na cultura. Nas festas populares, ele encontrou abrigo e expansão. As celebrações religiosas e profanas passaram a incorporar bandeirinhas, estandartes bordados, arcos florais, imagens decoradas com fitas e tecidos coloridos. Tudo era motivo para ornamentar: as ruas, os corpos, os rituais. O barroco virou linguagem sensível, emocional, coletiva.
E aqui, ele ficou. O rococó mal tocou esse lado do oceano — assim como o neoclássico e outras correntes que ganharam força na Europa nos séculos seguintes. Isso porque, nas Américas, sobretudo nas colônias, o barroco não foi apenas um estilo estético: ele se enraizou como linguagem emocional e religiosa. As estruturas sociais e culturais eram outras. O barroco aqui atendia a uma necessidade real de expressão afetiva, de sincretismo, de festa. Além disso, a distância geográfica e o ritmo mais lento da circulação de ideias e modas contribuíram para que as novas tendências europeias demorassem (ou simplesmente não encontrassem espaço) para se estabelecer. Enquanto lá se buscava a razão, aqui ainda se precisava do encanto. E o barroco seguia servindo — como arte, como fé, como cultura viva. Por isso, o exagero virou raiz.

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